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A presidenta e sua identidade sexual sob suspeita

2012
valdecipsi@hotmail.com
Psicólogo. Professor Titular de Psicologia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Doutorando em Psicologia Clínica na Universidade de Évora-PT. Especialista em Metodologia do Ensino de 3º grau. Mestre em Sociologia da Sexualidade.

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A presidenta e sua identidade sexual sob suspeita

“Há homens mais ou menos efeminados e mulheres mais ou menos masculinizadas, além de toda a gama de bissexuais, homossexuais e transexuais que escapam à perspectiva simplificadora”(Edgar Morin).

 

O ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva foi como político muito além da sua origem pobre e marginalizada de imigrante nordestino. Se o seu governo foi bom ou ruim, aqui não vem ao caso, mas uma coisa é certa, seu inquestionável feito diferenciador como marco histórico no Brasil: legitimar uma mulher para substituí-lo no cargo mais importante do país. Nesse quesito foi único, avançado, pós-moderno, exemplar. Embora, ainda não tenha tido o devido reconhecimento de agente desse divisor de águas que abriu precedente e elevou a estima da mulher brasileira.

Sem o Lula da Silva, a faixa presidencial, tão cedo, não seria repassada para o sexo feminino, em especial, com a identidade sexual sob suspeita. Esse ex-presidente pode ser acusado de tudo, menos de que é machista, fez questão de que seu lugar não fosse ocupado por outro macho, meio coronel, uma sua cópia. Não se sabe quais as verdadeiras razões que o motivou ou as vantagens que obtivera por causa disso, mas, com certeza, o ganho maior foi das mulheres que deram um grande e significativo passo à frente.

No seu ritmo tradicional, este povo ainda não estava preparado para ser governado por mulher, Dilma Rousseff foi eleita no vácuo da esperada continuidade do governo Lula da Silva. Portanto, não só por mérito próprio ou competência. Qualquer outra pessoa pela qual o presidente se afeiçoasse seria igualmente contemplada, porque a competição pela vaga presidencial estava orquestrada sob sua batuta. O terreno havia sido muito bem adubado, bastava plantar, somente uma semente realmente muito ruim poderia não vingar.

Rousseff tinha a pecha da luta armada, história de terrorismo, mas nada disso impediu sua vitória. Figura inexpressiva, sem carisma, meio blindada, típica burocrata, raramente é traída pela espontaneidade, e quando tenta parecer descontraída é muito sem graça. Mas não é uma histérica como a vizinha Kirchner e nem uma bem definida senhora a exemplo da “ex-dama de ferro” Thatcher. Dilma é pouco feminina, muito parecida com a colega alemã Merkel, ambas estão sempre cabisbaixas, sugerem, talvez por timidez, não olhar nos olhos do seu interlocutor.

Dilma Rousseff demonstrou, por duas vezes, insegurança, preconceito e ignorância em relação à homossexualidade, quando candidata em resposta à sua sexualidade questionada e, na condição de presidente, quando condenou o “Kit gay” que seria distribuído nas escolas. Na campanha, “à queima roupa”, o repórter Efrém Ribeiro, de Teresina-PI, perguntou: “A senhora é homossexual como andaram espalhando na Internet?”. Essa abordagem é agressiva não só porque diz respeito a um tema ainda tabu, mas também por se encontrava fora de contexto. A candidata não estava num congresso palestrando sobre sexualidade, e muito menos falando a respeito da sua intimidade. Em vista disso, essa abordagem deixou clara a intenção do repórter de, no mínimo, deixá-la numa “saia justa”.

Para Martins (2012, p.138), “a celebridade que admite ser gay está se tornando uma figura trivial, que já não provoca nem escândalo nem admiração”. Mas isso não autoriza que, sem conhecer, invadam a privacidade do outro, especialmente em público, sobre sua identidade sexual. A revelação do artista, nem sempre bombástica, de que é gay, em geral, está atrelada a alguma jogada de marketing. Mas para o gay cidadão comum, a sua confissão, no aspecto social, talvez não seja tão positiva. Segundo Adam et al. (citado por Bozon, 2004), o fim da discriminação legal é bem menor do que a real em seleção para emprego, local de trabalho, e que os homossexuais jovens tem mais depressão e tentam suicídio.

Mas, há uma pressão para que o gay artista ou não, “saia do armário”. Daqui a pouco se estabelecerá a ditadura de que todo gay tem que prestar uma declaração pública dessa sua condição, algo parecido com o que aconteceu num passado, não muito distante, com as virgens. A moça sentia vergonha de dizer que era virgem, assim, para não ser menosprezada no grupo de pares, se forçava, sem ter condição psicológica e nem vínculo afetivo, na primeira oportunidade a perder a virgindade com qualquer sujeito.

A candidata Dilma Rousseff devia está preparada para responder ou conter questionamentos sobre sua sexualidade, não adianta fugir ou fingir que isso não atinge sua pessoa ou não lhe diz respeito, mais cedo ou mais tarde esse detalhe da sua vida viria à átona, seria ressaltado. Visivelmente desconfortada pelo impacto da indagação, ao invés de reprimir a indelicadeza ou, o que seria mais producente, aproveitar o ensejo para dá uma lição de tolerância à diversidade sexual, ela exclamou: “Ah meu querido! Eu nem vou responder a isso. Não vou responder”. Rousseff não tinha intimidade com esse repórter para tratá-lo de “meu querido”, o que soou falso, pareceu uma tentativa de abrandar a fúria bisbilhoteira do jornalista.

A homossexualidade ainda é, por total ignorância, considerada doença ou safadeza. Os homofóbicos ardem no desejo de que os homossexuais não existam ou que paguem por essa “perversão”, de preferência, num campo de concentração nazista. Mas, de várias maneiras, o mundo continua nazista no seu trato com os homossexuais. A humanidade nunca será suficientemente civilizada para acabar com o preconceito contra homossexual. No futuro a discriminação não vai se extinguir, mas apenas mudar a roupagem, usar modos mais brandos, suaves ou disfarçados para continuar a perseguição e a destruição, a diferença é que, escapando das agressões, das mortes simbólicas ou de serem assassinados, os gays ousarão cada vez mais a saírem do armário.

Em seguida, Dilma se comportou como menina birrenta, “bateu pé”, reafirmou: “não vou responder”, mas, infelizmente, com uma justificativa lastimável terminou respondendo: “Eu tenho uma filha e sou avó. Pelo amor de Deus!”. Que resposta mais rasteira, elementar, preconceituosa! E daí candidata? Ter uma filha não prova nada. Ser gay não é sinônimo de impotência e de esterilidade. Muitos gays têm filhos porque desejaram ou se casaram na tentativa de encobrir a sua homossexualidade ou, ainda, por se julgam bissexuais. Assim, passam incólume pela descriminação e exclusão social, e não afeta a carreira profissional. A impossibilidade da procriação “[...] de fato ocorre, sim, mas quando se trata de homossexual heterofóbico” (Costa citado por Silva, 2010).

A condição sexual humana é bissexual inata e da natureza plástica (Cucchiari, 1996, Berger & Luckmann, 1997). Mas, na visão do senso comum, o homem normal é o heterossexual que constitui família e tem filho, que considera como uma Lei natural. Assim sendo, não admite que homem ou mulher tenha um ser do mesmo sexo como objeto sexual. Por conseguinte, muitos homens sofrem para tentar cumprir essa promessa, ou perseguem homossexual na tentativa de atenuar a incerteza da própria identidade heterossexual.

Na busca desesperada de se firmar em algo que, no seu entender, podia selar sua imagem de heterossexual, a candidata Dilma reforça sua resposta: “e sou avó!”. Como se quisesse salientar que passara por duas barreiras eficazes e comprovativas de que não é gay: a primeira, “ter uma filha” e, a segunda, “ser avó”. De novo, seu preconceito fica evidente, e essas falas da candidata de suposta exigência de respeito não surtiram efeito. Por acaso não existe avó gay? Não há contradição nenhuma nisso, uma coisa não tem nada a ver com a outra. Tem avó gay, sim, cujos netinhos a adoram e sabem que ela gosta tanto de mulher que vive com outra vovozinha.

Sem ter mais para o que apelar, ao invés de Nossa Senhora como ela disse, durante a campanha, ter mais fé, recorreu ao todo poderoso: “Pelo amor de Deus!”. Essa expressão deixa implícito: “pelo amor de Deus me deixe em paz, não me importune mais, afinal já lhe dei todas as provas de que não sou homossexual”. Todavia, não é tão simples assim pôr uma pedra nessa curiosidade, quando se trata de figura pública ou autoridade importante, geralmente, a imprensa e o povo se sentem no direito de devassar sua intimidade. As respostas de Dilma não apagaram a fumaça da dúvida que ficou no ar: a, até então, candidata é ou não é gay? Enfim, o repórter conseguiu seu objetivo que era colocar a sexualidade dessa senhora em questão.

O fundamental é que a presidente tenha competência para conduzir o destino do país da melhor forma possível, que consiga elevar seu crescimento e colocá-lo entre os países desenvolvidos, porque já chega desse cristalizado patamar de emergente. Que essa mulher heterossexual ou gay, nos dignifique com um governo imparcial e honesto. O que ela faz ou deixa de fazer com a parte inferior do seu corpo, com quem divide sua cama, nada disso importa, somente lhe diz respeito. Para o povo deve interessar suas ações públicas e suas intenções em benefício da nação.

Mas, na hipótese de Dilma se confessar homossexual, que perigo teria? O mundo, certamente, não fecharia suas portas para o Brasil porque sua presidente não gosta de homem. Do contrário, contribuiria para a derrubada de boa parte do preconceito, e não sofreria impeachment por isso. Acredito que não tenha na legislação nenhum item de obrigatoriedade de que a condição sexual do presidente seja heterossexual. Portanto, seria aclamada a primeira presidente lésbica do mundo. Porém, o silêncio de Dilma e o modo como reagiu à contundente pergunta do repórter, demonstra pouca sensibilidade para as dificuldades enfrentadas pelos homossexuais.

Como presidente, em relação ao “Kit gay” que seria distribuído nas escolas, Dilma Rousseff (2011, p. 28) afirmou: “Não aceito propaganda de opções sexuais”. Sua ignorância sobre o tema começa pelo uso inadequado do termo “opções”, a homossexualidade é uma condição ou orientação biopsicossocial e cultural. Esse Kit anti-homofobia deixou em pavorosa os inseguros com a própria sexualidade, antes que fosse distribuído, em nome da integridade heterossexual das crianças, fizeram campanhas alegando que o Kit fazia apologia à homossexualidade. Na verdade, os vídeos, sem nenhuma tendenciosidade, apenas mostra a realidade desse universo: caso o adolescente resolva assumir publicamente a condição homossexual ou transexual, por meio do Kit fica sabendo “o preço que tem de pagar”.

Dilma não foi capaz de reverter o questionamento sobre a sua sexualidade numa mensagem de menos intolerante com a homossexualidade. Que queira revelar ou não, seja qual for sua condição sexual, é uma opção sua, mas, na relevância da função que ocupa deve ter o cuidado para não complicar mais ainda a vida de 10% da população brasileira assumidamente homossexual. Nas situações aqui colocadas, de alguma forma, a chefe maior do Estado alimentou o preconceito, tentando ignorar para não chamar a atenção sobre si ou esquecendo que tem “calcanhar de Aquiles”. Decerto, esse será seu ponto nevrálgico que, impiedosamente, irão lhe atacar quando seu governo não mais corresponder às expectativas do povo e/ou os interesses de grupos poderosos.

Finalmente, a presidente fique certa que a verdade um dia emergirá por meio de biografia autoriza ou não, da pessoa com quem compartilhou sua intimidade, que não vai deixar passar a oportunidade de ganhar notoriedade em cima da sua história. Mas, a Dilma Rousseff é a nossa presidenta, foi eleita pelo povo e essa legitimação tem que ser respeitada. Sem dúvida, num país machista como é o nosso Brasil, ter presidenta já é uma revolução, e se por ventura a mesma se declarasse lésbica, seria um impacto de abertura de mentalidade não só para o contexto latino, mas também para o mundo inteiro. Como diz Whitehead (citado por Morin, 2005, p.23), “a nova mentalidade é até mesmo mais importante do que a nova ciência e a nova técnica”. Ainda não temos estrutura para suportar tamanha evolução.

 

REFERÊNCIAS:

Berger, P. L., & Luckmann, T. (1997). A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. (14a edição). Petrópolis: Vozes.

Bozon, M. (2004).   Sociologia da sexualidade. Rio de Janeiro: Editora FGV.   

Cucchiari, S. (1996).  La revolución de género y la transición de la horda bisexual a la banda patrilocal: los orígenes de la jerarquía de género. In Lamas, M. (Org.). El género: la construccion cultural de la diferencia sexual. México: PUEG. 

Martins, S. (2012, agosto 1º). Perdeu a graça (seção Showbiz). Revista Veja, 2280 (31), Ano 45, 138.

Morin, E. (2005). O método II: a vida da vida. Porto Alegre: Sulinas.

Ribeiro, E. (2011). Repórter pergunta se Dilma é gay. Disponível em: <www.outube.com/watch?v=pQn4m0xFNBw> (15/12/2011).

Rousseff, D. (2011, junho 1º). In Semana. Revista ISTOÉ, 2168, Ano 35, 28.

Silva, V. G. (2010). Nuances dos testes psicológicos e algumas inquietações pós-modernas. João Pessoa: Ideia.