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As ruínas narcísicas de Notre-Dame

2019
pedrosampaiominassa@gmail.com
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (Brasil)

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As ruínas narcísicas de Notre-Dame

Por detrás de todo grande templo há sempre uma legião de invisibilizados que se queimaram em prol donde hoje se queimam velas.

A Catedral de Notre-Dame, símbolo histórico, cultural, religioso e turístico da França e do mundo ocidental como um todo recentemente entrou em chamas, deixando ao seu redor destroços, fumaça e cheiro de um incenso não querido pelas ruas de Paris. As ruínas de Notre-Dame, no entanto, devem ser motivo de alguma reflexão para a tradição judaico-cristã e porque não, para todos nós.

Construída no coração de Paris (na famosa Île de la Cité), a catedral gótica presenciou vários acontecimentos históricos, da Idade Média, período em que foi praticamente erigida do zero (1163-1245), ao auge da Revolução Francesa com a coroação de Napoleão Bonaparte no átrio mais icônico da construção. Não é preciso nem dizer a grandiosidade e vislumbre arquitetônicos que deixam qualquer visitante de queixo caído. Mas por que a tragédia no palco de um dos maiores clássicos de Victor Hugo mexe tanto com o emocional das pessoas?

Por seu valor histórico? Por sua beleza e engenhosidade arquitetônicas? Por sua capacidade de transmitir espiritualidade aos fiéis? Pode ser. Entretanto, chama a atenção o tom que tomou a repercussão do evento nas redes sociais ao redor do globo, com inúmeras fotos tiradas do fundo do baú digital. Frases como as seguintes foram comuns nas legendas das referidas fotos: “não posso acreditar que este lugar mágico que eu fui em 2014 está em chamas”, “este lugar é sobrenatural, me trouxe tanta paz, até chorei”, “quando entrei nesta igreja não conseguia me segurar de tanta paz. Esta é a foto do dia em que estive lá em 2002”, “lembro quando sentei dentro da catedral e entrei aos prantos, tamanha beleza”. Sem a hipocrisia de querer generalizar, pergunta-se: por que real motivo tantas pessoas resgataram fotos de si mesmas em frente à catedral e postaram num de seus dias mais trágicos?

Boa parte delas, com certeza, aproveitaram o momento de verdadeiro pesar para muitos, para expor de modo nu e cru: “eu já estive lá”. Acontece que fatos como o ocorrido mereceriam outro tipo de atitude, outra postura reflexiva. Muitas das construções faraônicas do Ocidente foram erguidas, durante séculos, utilizando-se dos meios mais ardis possíveis e imagináveis para um dia tornarem-se o ponto turístico de sua foto ou de seu cartão-postal. Quem vai a Versalhes, por exemplo, impressiona-se, com facilidade, com a enormidade do Palácio ou mesmo com a exuberância do seu geométrico jardim, mas quantos são os que se perguntam: quantos tiveram de morrer para colocar de pé este monumento?

Alguns dados historiográficos dão conta de que milhares de trabalhadores, sem os mínimos direitos, ergueram Versalhes do zero, muitos dos quais morreram por epidemias, na construção do que, hoje, achamos lindo. A história contada inviabiliza o que a história não conta. O número de invisibilizados que foram privados, por séculos, do direito à vida e à liberdade, também entram na conta dos templos da Igreja Católica e de tantas outras, como a Catedral de Notre-Dame. Numa Paris medieval, erguer uma catedral, por certo, não era trabalho de nobre, nem do clero, mas do pobre burguês, o quasímodo do subúrbio parisiense que, a par de suas naturais misérias, fora forçado a erguer um templo, ainda que não fosse o de sua religião. Templo, agora, das nossas selfies, dos nossos inúmeros sentimentos de paz, magia e pesar.

Notre-Dame em chamas é alerta para a memória de uma igreja que, embora ainda viva, parece flertar em muitos de seus segmentos com práticas do nefasto período das trevas. Notre-Dame em chamas é momento de meditação por parte de cristãos e ocidentais que, não obstante creiam no bem da humanidade, se esquecem de quanto mal, suor e sangue foi preciso para hoje se poder enxergar apenas beleza. Notre-Dame em chamas é momento de reflexão para todo o Ocidente que só ensina e aprende o lado charmoso da história e que insiste em apagar as veias ainda abertas do sofrimento humano. Notre-Dame em chamas é sinal de que a suntuosidade dos verdadeiros cristãos não reside em grandes catedrais, mas numa manjedoura e na simplicidade de um estábulo, que acolheu o seu verdadeiro profeta. Notre-Dame em chamas é o chamado para que não apenas notre, mas também as inúmeras votre dames de outras crenças sejam respeitadas.

Que a Igreja Católica aproveite a triste oportunidade, não para a prática medieval da simonia (compra e venda de coisas espirituais, como objetos, indulgências ou sacramentos), mas para reconhecer as vidas quasímodas que se consumiram inteiramente na construção de seus templos. Que Notre-Dame possa ser, a partir de agora, símbolo do nobre povo que a ergueu em troca da própria vida, mais do que dos impérios que um dia seu altar coroou.

Pedro Sampaio Minassa

Pedro Sampaio Minassa é brasileiro, graduando (já finalista) em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo e cronista nos tempos livres. É colaborador de diversos portais e jornais, tais como o P3 (Público, Portugal), Portal DUO, Portal do Envehecimento, Crônicas da Editora KBR.

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