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Coronavírus e a higiene do caos

2020
nascimentolag@gmail.com
*Doutoranda e mestre em Estudos Linguísticos na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), graduada em Letras Vernáculas (UEFS). Vinculada aos grupos de pesquisa Labedisco (Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo - UEFS/Cnpq). **Acadêmico do curso de Psicologia da UNIFACS – Universidade Salvador Feira de Santana/BA (Brasil)

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Coronavírus e a higiene do caos

“Nada é negativo na transgressão”, disse Foucault. A transgressão afirma o limite e o ilimitado. Assim, não há limite sem a possibilidade de transgredi-lo. Sair da caixa, ser menos do mesmo... tantas formas de transgressão em uma lógica de poder que nos empurra à mesmice e a impossibilidade de contestação.

Tomo Foucault mais uma vez para falar que, para cada transgressão, como tem que ser, são refinadas as estratégias de manutenção dos limites. Os limites daquilo que podemos ser, dizer, de como podemos existir.

Temos que estar atentos, pois só vemos o que há de bonito no discurso, o que há de fecundo. Nesse momento de pandemia, é necessário que atentemos nosso olhar para certas estratégias que remontam lugares sociais há muito já existentes.

Me peguei pensando hoje sobre a “higiene social” que a pandemia nos trouxe. Todos os dias, somos bombardeados com tutoriais, noções, conceitos, saberes institucionais sobre a limpeza e como ela nos salvará da morte real ou econômica que a pandemia nos trará. Como é importante lavar as mãos! Nunca antes nos foi tão importante limpar a sociedade, limpar...

A limpeza marca quem somos enquanto sujeitos. Se pensarmos nas dinâmicas sociais das populações, a limpeza é um direito adquirido e diretamente proporcional à visibilidade. Não é uma questão de humanidade, mas sim uma marca dos exercícios de poder: trocando em miúdos, o cheiro que te marca como preto, a sujeira que te marca como pobre...

Limpeza não é para todos. A sujeira é para os pobres, por isso a máxima “sou pobre, mas sou limpinha”. E nesse MAS, questiono o que é ser limpinha? Quem é o sujeito que transgride esse lugar da sujeira? Falta de água e falta de sabonete não nos estarrece enquanto parte de um grupo social. Nos estarrece pela possibilidade de que essa marca social nos atinja. E, se morrermos, a culpa é da sujeira. É porque não nos limpamos o suficiente. É porque tornamos visível nossa podridão.

Tomo Foucault de novo para dizer que “contestar é ir ao núcleo vazio”. Tomo, bebo Foucault, para pensar que, contestando, chegamos ao nada e à possibilidade de reinvenção de nós mesmos, esse grande Si.

Quem é o ser do limite? Não sei, não tenho respostas, nunca estive em meio a uma pandemia antes. Sei que esse vazio, nihil negativum, nos dá a chance de desdobrar, ressignificar, ser de governado de outro jeito (governado mesmo, literalmente).

Escolho ser sujeito gente. E você?