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Envelhecimento activo e humanitude

2016
joana_s.j_rodrigues@hotmail.com
Psicóloga clínica

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Envelhecimento activo e humanitude

Desde o dia em que nascemos começamos a envelhecer. Há, porém, etapas marcadas por datas, que são apenas referentes sociais, mas que condicionam a vida de cada um de nós. Um desses referentes é chegar aos 65 anos e atingir a "terceira idade", e um outro é quando se deixa de trabalhar e se entra na condição de reformado.

O processo de envelhecimento é um processo individual, que cumpre o seu próprio ritmo, de acordo com a herança genética recebida, com as condições ambientais em que este se desenvolveu e com todas as experiências ao longo da vida. Esta fase é propícia ao aparecimento de questões existenciais, sobre a importância da vida que se teve, o valor das coisas que se fizeram. No momento em que se olha para trás, por vezes com um olhar mais triste, é também importante encontrar-se satisfação no presente. Esta pode ser uma fase em que se perdem amigos, onde as questões de saúde podem ser uma grande preocupação e o bem-estar ter um outro valor.

Envelhecer bem é envelhecer de forma activa e satisfatoriamente, com capacidade para praticar estilos de vida e formas de comportamentos para melhor desfrutar do bem-estar durante o máximo de tempo possível. Para se envelhecer bem, cada pessoa tem de tomar a decisão de intervir no seu processo de envelhecimento. Envelhecer com êxito depende da sociedade, dos seus sistemas de saúde e de protecção, e do próprio indivíduo, sendo que este é agente do seu desenvolvimento pessoal e, em certa medida, da sua saúde, da sua participação e da sua segurança.

O Envelhecimento Activo, segundo a Organização Mundial da Saúde, "é um processo de optimização das oportunidades para a saúde, a participação e a segurança, com o objectivo de melhorar a qualidade de vida à medida que as pessoas envelhecem". Para promover o envelhecimento activo há factores essenciais que é preciso privilegiar. É imprescindível cuidar do corpo e do funcionamento cognitivo, pois estes ajudarão a optimizar as capacidades físicas e psicológicas e a compensar algumas lacunas, se for esse o caso, melhorar as relações familiares e sociais, ganhar uma maior participação social e, por último, enfrentar situações difíceis sabendo lidar com estas adequadamente. São estes os ingredientes fundamentais do envelhecimento activo: a saúde, o funcionamento intelectual e o compromisso com a vida.

Comprometermo-nos com a vida implica o sentimento de que somos necessários, de que aquilo que realizamos tem sentido e é útil para os outros com quem convivemos, o que incentiva as actividades fora de casa, sentirmo-nos menos sós, sermos independentes da família, termos uma boa rede social e preocuparmo-nos com os outros.

Mas surge aqui uma grande questão. Como se pode envelhecer de forma activa numa instituição? E é aqui que entra o conceito de Humanitude, que se caracteriza por ser um cuidar centrado na pessoa cuidada (interesses, gostos, características pessoais) e na relação entre essa pessoa e o cuidador. Nesta metodologia, existem técnicas relacionais, assentes em pilares relacionais. E tem como objectivos desenvolver a co-responsabilização do cuidador e da pessoa cuidada, promovendo a participação da pessoa cuidada nos cuidados e decisões, segundo as suas capacidades físicas e cognitivas, indo ao encontro do envelhecimento activo.

Sendo assim, talvez pudéssemos ter um envelhecimento realmente activo nos lares e nos centros de dia. Por que não então tentar fomentar mais estas práticas que apenas visam a qualidade dos cuidados e o bem-estar de quem é cuidado? Não será importante criarmos um maior debate na sociedade para conseguirmos novas políticas e novas práticas no cuidar, para se ir ao encontro de um novo paradigma, realmente humanista? Pode-se envelhecer de forma activa em casa com a família, em casa sozinho, num lar... Vamos permitir e apoiar os nossos idosos a envelhecerem de forma tranquila.

"A Laura morreu, pegaram em mim e puseram-me no lar com dois sacos de roupa e um álbum de fotografias. Foi o que fizeram. Depois, nessa mesma tarde, levaram o álbum porque achavam que ia servir apenas para que eu cultivasse a dor de perder a minha mulher. Depois, ainda nessa mesma tarde, trouxeram uma imagem da nossa senhora de Fátima e disseram que, com o tempo, eu haveria de ganhar um credo religioso, aprenderia a rezar e salvaria assim a minha alma. E um médico respondeu, a verdade é que ficam mais calmos. Achei que era esperado de mim um desespero motor. Digo motor para dizer de acção. Algo como partir coisas, revirar os móveis, agredir fisicamente os funcionários, os enfermeiros que me poderiam prender. O quarto pequeno é todo ele uma cela, a janela não abre e, se o vidro se partir, as grades de ferro antigas seguram as pessoas do lado de dentro do edifício. Pus-me a olhar para o chão, com ar de entregue. Estou entregue, pensei. Aos meus pés os dois sacos de roupa e uma enfermeira dizendo coisas simples, convencida de que a idade mental de um idoso é, de facto, igual à de uma criança. O choque de ser assim tratado é tremendo e, numa primeira fase, fica-se sem reacção. Se aquela enfermeira pudesse acabar com aquele sorriso, ao menos acabar com aquele sorriso, seria mais fácil para mim entender que os meus sentimentos valiam algo e que sofrer pela Laura não vinha de uma lonjura alienígena, não era uma estupidez e, menos ainda, vinha de um crime pela clausura e tudo. E ela sorria e eu poderia desejar-lhe, com tanto desprezo, o pior mal do mundo. Que lhe arrancassem os braços e as pernas, pensava eu, tirem-lhe os olhos e façam-na perder a voz e chamem-lhe cabra porque é o que ela merece. Senhor Silva, com esta mantinha vai ficar quentinho à noite, ainda aqui vai ter muitos sonhos bonitos, vai ver."

(in A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe)

 

Por decisão pessoal, a autora do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

 

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Joana de São João Rodrigues

Joana de São João Rodrigues é Psicóloga, Membro Efetivo da Ordem dos Psicólogos e especialista em Psicologia Clínica e da Saúde. Possui licenciatura e mestrado em Psicologia Clínica e da Saúde pela Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. É Pós-Graduada em Educação Social e Intervenção Comunitária e Membro Associado da Associação Portuguesa de Terapias Comportamental e Cognitiva. É Formadora Certificada pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) e pelo Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua. Desenvolveu actividade clínica de apoio a doentes com doença oncológica e seus familiares no Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil do Centro Regional de Oncologia de Lisboa, no Serviço da Clínica da Dor. Deu apoio psicológico às famílias e crianças com cardiopatias congénitas internadas no Hospital Vall d'Hebron para cirurgia através da Associació d'ajuda als Afectats de Cardiopaties Infantils de Catalunya (Associação de ajuda aos Afectados por Cardiopatias Infantis da Catalunha), em Barcelona. Desenvolveu actividade de apoio às necessidades das mulheres vítimas de violência doméstica/abuso sexual, pela Associação de Mulheres Contra a Violência, em Lisboa. Esteve integrada em diversos projectos de Cooperação Internacional, onde deu formação na área da promoção da saúde em Angola e Guiné-Bissau e foi técnica de cuidados continuados integrados de saúde mental na Associação para o Estudo e Integração Psicossocial, em Lisboa. Desde 2011 exerce clínica privada com jovens, adultos e seniores e desde Março de 2016 que integra a Equipa da ClaraMente - Serviços de Psicologia Clínica e Psicoterapia, com o objectivo de promover a saúde mental e a qualidade de vida, disponibilizando serviços de Psicologia Clínica e Psicoterapia em consultório em Lisboa e Caldas da Rainha. Desde Abril de 2019 que trabalha no Hospital Lusíadas em Lisboa, nas Unidades de Tratamento de Dor e Oncologia.

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