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Palavras são lego

2018
affonsocalebe@gmail.com
Graduando em Psicologia pela Faculdade Pernambucana de Saúde. Tem experiência na área de psicologia, além de estar comprometido permanentemente com a formação psicanalítica.

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Palavras são lego

Não é preciso observar de perto o contexto histórico e antropológico do ser humano para saber que ele tem uma leve queda pelo sentido. Nada inexplicável pode ficar de fora dos diversos grupos de saberes que tanto se empenham para não deixar nada em aberto. A filosofia e suas reflexões sobre a vida, as religiões e suas concepções morais que dão sentido à existência, a ciência e suas leis totalmente sustentadas pela razão, e muitos outros saberes que nos permeiam. O que tudo isso tem em comum? A possibilidade de validar algo.

Em diversos setores da vida humana, senão a grande maioria, a fala é utilizada para comunicar um tanto que queremos transmitir para o outro. Se faz necessário, então, o mínimo de coerência e sentido nesse discurso para que a mensagem possa ser decodificada por aquele que ela foi endereçada, e assim possa ser entendida, ou acharmos que foi, como acredito que aconteça. Com isso, sua fala poderá ser validada.

Caso não siga uma lógica do sentido que se encaixe como verdadeira e possível, fazendo com que as sentenças proferidas por aquele que fala se encaixem perfeitamente, essa fala pode ser desvalidada e tida como falsa. Isso será confirmado com a necessidade de um conceito de verdade, que os indivíduos se impõem, uns aos outros, para saciar a necessidade contemporânea de crer e suspeitar.

Me refiro a essa “lógica do sentido” como algo que transita entre todos os outros saberes. Por exemplo: de acordo com a física, uma pessoa não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Caso eu afirme com a sentença: “Eu fui ao Canadá e ao Chile no mesmo instante”, entrarei na posição de fala falsa, já que isso vai contra os saberes físicos, porém, em outra concepção de saber, essa sentença pode ser verdadeira, mas o que eu quero mostrar mesmo é que a “lógica do sentido” pode realmente transitar em todos os saberes, apenas ligando as suas concepções e declarando se é “verdadeiro”, “falso” ou/e “possível”.

Uma das obras de Aristóteles¹, por exemplo, - a De interpretatione - compilada e nomeada de Organon em um conjunto maior de obras, fundam a já conhecida Lógica Formal que é matriz do que, de certa forma, se sustenta até hoje em termos de fundamentação do mundo. Aristóteles sistematizou que as proposições da linguagem - e nesse caso estou sendo mais específico, ou seja, a fala - ou são afirmadas ou negadas; não se concebem como verdadeiras ou falsas ao mesmo tempo. O valor que é tido como falso de uma, implica, automaticamente, a verdade de outra.

Nessa obra Aristóteles discute a questão do significado das palavras, da natureza e estrutura da proposição, e ainda do verdadeiro ou falso como resultado da relação entre proposição e o real. Esse real não diz respeito a realidade psíquica na qual a psicanálise se detém. Essa diz respeito a aquela compartilhada pelo mundo, uma espécie de senso comum.

Tomemos como exemplo a frase: “Minha tia é um homem”. Nessa sentença, a “tia” não pode ser um homem, já que a palavra TEM que dizer respeito a uma pessoa do gênero mulher, e na frase diz respeito a uma pessoa do gênero homem. Seguindo essa lógica, essa frase se torna falsa e, portanto, incoerente. Mas quando falo isso, digo que acontece no cotidiano, nas trocas de sentido NECESSÁRIAS para que hajam as comunicações diárias. Necessárias porque é no sentido que se sustenta a comunicação humana. Quando entramos no campo da psicanálise, toda essa lógica é derrubada e assim somos jogados no campo do furo no sentido. É possível afirmar que Aristóteles validou o terreno dogmático da não contradição, algo insustentável a partir da experiência analítica.

Essa experiência nos diz sobre a fala e a palavra. Retomemos Freud. As revelações das histéricas traziam conteúdos que aparentemente eram contraditórios. Transitavam naquela época como boas mentirosas, mas Freud nos mostrou que elas estavam nos apresentando o nascimento da verdade na fala, digo, a verdade para sua realidade psíquica. “Pois a verdade dessa revelação é a fala presente, que a atesta na realidade atual e que funda essa verdade em nome dessa realidade”, diz Lacan em Função e campo da fala e da linguagem².

Quando penso na relação de uma escuta dessa fala legitimada por uma lógica formal, penso no quadro de Antonio Pollaiuolo, onde São Sebastião é tomado por diversas flechadas. Acredito que a escuta e a intervenção do analista devam partir das práxis do furo dessa fala.

 

O martírio de São Sebastião, 1475

 

Dirigida por aparatos dialéticos e principalmente de escuta, a psicanálise poderá, por exemplo, ter esses opostos (verdadeiro e falso) como idênticos, na medida em que um concede existência lógica - não semântica, mas sim inconsciente - ao outro. O regimento clínico do recalcamento e do retorno do recalcado exemplificam com rigor esses dois elementos discursivos que até então são opostos e que se anulam, mas que exercem similaridade no que diz respeito às suas origens inconscientes. Isso nos leva ao que Freud instituiu como a dupla inscrição de pares de opostos no interior de uma mesma matriz sintomática ou espaço psíquico.

No caso Dora, em uma nota de rodapé, Freud fala que para a produção de um sintoma, principalmente de ordem somática, é necessário que mais de um elemento patológico se una, e que apenas um não é viável para a pulsão no que diz respeito a uma formação sintomática. Sabendo disso, acredito que posso afirmar que a própria contradição discursiva do analisando quando está falando sobre um sintoma é totalmente verdadeira e esperada, já que há uma condensação de um material patológico diverso inconsciente nessa fala.

A psicanálise não trata a palavra por sua conceituação formal, nem muito menos como um signo puro, uma espécie de objeto que é mediante a consulta no Aurélio. Diferente de uma análise de um sentido lógico-formal já pronto, encarar a possibilidade de cada palavra ser um mundo único a ser desbravado é, sem dúvida, desafiador. Carlos Drummond de Andrade³, em A Paixão Medida nos diz isso de forma mais bela:

 

Já não quero dicionários

consultados em vão.

Quero só a palavra

que nunca estará neles

nem se pode inventar.

 

Que resumiria o mundo

e o substituiria.

Mais sol do que o sol,

dentro da qual vivêssemos

todos em comunhão,

mudos,

saboreando-a.

 

Quando se escuta, por exemplo, uma pessoa que foi diagnosticada com um determinado transtorno X (algo nenhum pouco difícil na sociedade contemporânea), duas pessoas com esse transtorno X passarão a existir. Aquela que fala e aquela que escuta. Digo isso porque quando se busca o sentido na fala do analisando em relação a esse contexto, toda perspectiva do analista de como é ter tal transtorno virá à tona dando sentido a sua escuta, das mais razoáveis percepções até as mais ferrenhas fantasias infantis.

Isso não quer dizer que sua fala vá ser negligenciada. A diferença é que será possível sair desse campo da pura interpretação fantasiosa e ir para o da abertura discursiva da cadeia de significantes. Acredito que a escuta que faz falar também faz calar. Com essa abertura pode-se também demarcar aquilo que insiste na repetição da fala, mas que sempre se mostra de maneira diferente.

Lacan, em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”², nos diz que “a nós, analistas, convém reduzir tudo à função de corte no discurso, sendo o mais forte aquele que serve de barra entre o significante e o significado”. É como se no matema “S¹/S²”, a barra que os separa fosse ocasionada pela intervenção do analista. Penso que é nessa função de fazer uma “barra” que o sujeito que nos interessa é surpreendido, ou seja, o sujeito do inconsciente [JE]. O discurso na sessão analítica ganha valor justamente por tropeçar na sua impossibilidade de completude.

Pensei em um quadro de vetores que diz um pouco sobre o que tento passar. No primeiro há um encontro da fala do analisando com a interpretação focada no sentido do analista. Haverá um choque, tendo em vista que sua fantasia também estará em jogo. No segundo, a barra que vem depois das setas são as intervenções do analista que cliva o significante do significado fazendo com que haja uma rotatividade na cadeia de significantes. O traço que faz um corte nas barras diz respeito a algo que se repete no discurso, mesmo com sua abertura. É a apresentação da repetição diacrônica em um momento sincrônico.

 

 

Em “O desejo do analista: Uma operação de matematicidade”, Welson Barbato diz algo sobre isso.

O analista trata de discursos. Trata para não traduzi-los como tais, pois a mera tradução, repito, promoveria o infinito da produção de significações e, até mesmo, de signos. Um signo é, antes de tudo, um elemento acéfalo, o que mais propriamente se aproxima da lei lógica formal do objeto-idêntico-a-si- mesmo. Assim, a psicanálise lacaniana – no manejo da linguagem – não é nominalista, pois desconstrói os paradigmas universais da instância do imaginário e seus enlaces de densidade. Nessa perspectiva, temos um primeiro postulado ou axioma no que diz respeito à concepção psicanalítica de discurso: é preciso concebê-lo como uma estrutura, definida, antes de tudo, pela não linearidade.

 

Saber que palavras são tão complexas assim é, sem dúvida, encantador. Acredito que cada utilização delas sejam únicas. Vejamos. Ferdinand Saussure4 nos mostrou que uma palavra nada mais é que um som, em um determinado tom, com movimentos labiais específicos que ele nomeou como produto dessas variações, “imagem acústica”. Nós, seres medonhos que somos conseguimos atribuir algo a isso. Por isso que no fim, a palavra nada mais é que um grande NADA que pode vir a ser TUDO se considerarmos sua arbitrariedade.

Palavras são lego. Aquele jogo para criança que tantos adultos se afeiçoam. Um conjunto de pequenos, médios e grandes bloquinhos que quando montados podem ser uma cópia perfeita de algo, ou simplesmente uma criação totalmente nova. Cada sílaba pode ser considerada um bloco.

A palavra na boca do analisando pode ser um objeto de monta e desmonta; pode também, ser um objeto que quando montado lembre o que ele quis remeter, mas por uma incapacidade não consiga – penso que na clínica esse termo “incapacidade” possa ser substituído por recalque ou resistência; A fala pode vir ensaiada, pronta, como em alguns legos que seus blocos já são feitos para remeter a um objeto específico, como um navio, por exemplo, mas nada como um Ananfant - Pensei nessa palavra a partir do silogismo das palavras francesas: Analyste + Enfant para fazer analogia ao ato das crianças gostarem muito de desmontar seus brinquedos e com as partes fazerem novos - inquieto para mostrar que na verdade esse navio pode se transformar em duas canoas e três jangadas.

Minha jornada é curta, mas creio que experiência em psicanálise é algo que não existe. A cada sujeito que nos propomos a escutar, um novo jogo de lego nos é apresentado para que brinquemos com ele junto ao seu dono. Uma a uma, as palavras vão se erguendo. Elas irão nos convidar para o caminho do sentido, para a convicção de que estamos compreendendo o que o outro quis falar. Cabe a nós, como bons aventureiros da palavra, convidar quem escutamos para pular nesse precipício dos equívocos. Esse lugar, cheio de furos e possibilidades infinitas aponta para o que é mais presente no ser humano. O vazio! Então não sejamos tolos, nos acomodemos em nossas poltronas confortáveis, em pé em um leito de uma enfermaria, ou no chão com uma criança que brinca, e vamos escutar. Não o sentido que se ergue para nos fazer cair na fantasia da compreensão do outro, mas o nada de sua fala que pode vir a ser tudo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

¹ Chauí M. Introdução à história da filosofia: Dos pré-socráticos a Aristóteles. Editora Companhia das Letras; 2018 Jun 29.

² Lacan J. Escritos i. Siglo xxi; 2009.

³ Andrade CD. A paixão medida. Rio de Janeiro: Record. 2002.

4  De Saussure F. Curso de linguística geral. Editora Cultrix; 2008.