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Psicologia e putrefacção social

2016
pvpassos@gmail.com
Psicólogo clínico

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Psicologia e putrefacção social

O quotidiano de Olívia e Toninho não trouxe novidades de maior a nenhum, após o casamento.

Toninho continuava a achar piada às reactivas de Olívia e às suas formas de apreciar. Continuava a rir da mulher e a rir com ela.

Olívia, não sentia necessidade de ter que sentir alguma coisa mais, só pelo facto de estar casada, pelo menos em casa.

Nisso ela era bastante prática, sabia escolher os ambientes para se exigir.

Viviam na casa de Olívia, oferecida como prenda de casamento, pelo pai, por sugestão da mãe Rosalina.

Para Toninho não tinha significado de maior. Tinham que morar nalgum sítio, pagando eles ou não.

Ficou resolvido.

Ficou resolvido mas com o cumprimento do acordado entre os agora, marido e mulher. Nada e muito menos a casa, seria escolhido ou tinha interferência de Rosalina.

Rosalina só podia oferecer coisas que fossem quebráveis! Riam.

Não se imaginava a viver num cenário de teatro de revista.

 

Tinha muitas mais certezas sobre o que não queria e não gostava do que o contrário.

Toninho era intransigente em poucas coisas. Era, literalmente intransigente, com a falta de senso.

Interrogava-se sempre, até com alguma agressividade, quando percebia que, sendo o senso-comum o esquema mais elementar do funcionamento humano, como era possível este falhar? Só se se deixasse de ser gente?

A falta de senso estava muito enraizada e impedia a autocrítica.

Impedindo a autocrítica impede-se a evolução. Estagna-se.

Impedindo a evolução mantem-se o primarismo. Estagna-se.

Toninho, nestes pensamentos chegava a ver meia dúzia de hominídeos de gravata e saltos altos, num quotidiano de satisfação e sem a menor qualificação e competência avaliativa.

Era visceral o asco que sentia, relativamente a certos manifestos, designados por culturais. Cultura não é nada disto! Reforçava-se.

Sentia vergonha acima das suas capacidades de controlo, quando se dava de frente com a televisão emitindo um desses programas que ele tanto temia.

A revista à portuguesa encimava a lista, logo seguida pelas touradas, bem como por tudo o que envolvesse animais ao serviço de patetices.

Sempre tinha lidado com animais, cresceu no meio deles e cresceu apreciando os constantes flagrantes de nobreza que deles advinham, sobretudo em tudo o que concerne à ternura. Apaixonava-os e entendia-os.

Não era um homem com orgulho patriota.

Pouco lhe dizia a selecção nacional de futebol ou outras. Os símbolos nacionais também não mexiam com ele. O orgulho nacional era um limite que lhe tendia para zero, nos bons dias!

O fado (ou enfado! Como por ele referido, quando se intentava na convicção) era mais uma desgraça que fazia congelar Toninho, só de imaginar que se podia cruzar com essa brejeira e pobre lamúria guitarrada em qualquer esquina. Na sua versão de gingão, o fado era um atropelo para Toninho. Dizia ele: “essa coisa, designada por fado gingão, arrasta em si um jogo de cintura e um tremer de cabeça, que se exibe apenas com plateia, seja real ou imaginada, nunca sendo um manifesto genuíno, mas tão só um ordinário manifesto camuflador das incertezas viris. A mulher masculiniza-se, quando o canta, tentando, infrutiferamente, substituir o amargo cinzento por um leque de cores que nunca por cá existiu”!

Era a rendição perante o pessimismo e o fatalismo dos perdedores.

Era a portugalite, era a infecção do país, travestida de lantejoulas abandonadas pelo brilho.

O queixume justificava a existência quando esta não existe! Era o queixume no seu formato de alimento. De tóxico alimento! Era o leite materno fora de prazo. Era a paralisação chorosa e sentida da fome, satisfeita por lágrimas. Era o sorriso da pequenez. Era o elogio da permissiva dor nacional.

Toninho criticava vivamente a falta de pensamento avaliativo, o parasitismo e a desqualificação.

A rapaziada das televisões; os formatos de linguagens; os sotaques; as novelas; os espectáculos; os actores e actrizes de curso intensivo (ou de nenhum, a adicionar ao vazio das aptidões e vocações para esse fim); os jurados e juradas de concursos; as pequenas e os pequenos (independentemente da idade e do aspecto) a repetirem exaustivamente números de telefone em mendiga alusão ao consumo; as clonagens dos cabelos; dos trajes; das poses e dos chavões; o desespero e o pânico de um eventual dia mais sem um momento de protagonismo; o ar para-descomprometido e para-descontraído de alguns, em que impõem corporalmente que, estar escarrapachado numa cadeira, qual espreguiçadeira, é sinal de profissionalismo. Enfim, tudo o que, deste pobre e insano calibre existisse, Toninho repelia.

Repelia também, todas as manifestações de solidariedade, exibidas pela comunidade televisiva. Acartar feridas individuais para público tirava Toninho do sério. O aparato criado pelos outros, só se justificava enquanto aguardassem a sua vez para o desvalido, mas apreciado, estrelato da dor.

Misericórdia! Toninho sempre acreditou que o sofrimento não é para ser sofrido nas televisões. Se tem horário de emissão não é sofrimento.

É como haver listas de espera para parir.

Folgava em saber que havia muita gente que não queria, nem mortos, ir para a televisão sofrer.

Ria, mas com certa preocupação, pensando nos exemplos a repudiar.

Gostava de aconselhar, sempre que estava com amigos, para se ter cuidado com as vocações, para não se correr o risco de ser recrutado para uma televisão.

A desqualificação era, até ao tutano, intolerada por ele. E a desqualificação massiva, sendo a dominante e a que mais rapidamente se reproduz, destrói futuros, presentes e passados. Está a invadir tudo! É praga e de dimensões epidémicas!

Ficou adepto de quem ia viver para o estrangeiro. Sentia-se libertado com mais uma levada de gente a ir trabalhar para fora. Sentia que mais alguns estavam a ser poupados à exploração e à gatunagem. Sentia que eram mais alguns poupados à corrupção. Sabia que alguns iriam ter oportunidades de qualificação, não se deixando embrutecer pela trivialidade da cidadania em off.

Sabia que a realidade não era assim tão doce, mas sentia e sentia alívio.

 

Sempre se confraternizou com o elevado valor do altruísmo e do gregarismo.

Não se queria deixar adormecer pelos princípios acríticos desta gente e desta funcionalidade. Destes protagonistas, escapavam poucos. Muito poucos!

Chegou uma vez a perguntar, no hospital onde trabalhava, quem eram algumas das pessoas que tinham escrito alguns dos livros que se encontravam entre os mais vendidos, que via nas livrarias.

Tinha clara noção que esta classificação, a ser verdadeira, só podia ser um incentivo à compra. De outra forma não via sentido.

Sabia que os nomes estavam em português, mas não sabia quem eram os corpos desses nomes. Tudo se agravava, severa e irremediavelmente, quando a capa do livro era uma fotografia da pessoa que o tinha escrito. Nestes casos, pensava Toninho, o arrojo e a pouca vergonha ultrapassavam o egocêntrico narcisismo, na sua pior flagrância. Agravada pela indecência com que, descaradamente, faziam a difusão das responsabilidades, referindo que tal decisão tinha sido alheia à vontade do próprio ou da própria. Misericordiosa pobreza!

Não se pasmava com isto, era por mera informação, pois era sabedor que a leitura não sendo prática corrente por aqui, o número de exemplares vendidos não podia ir além do número de dedos de uma mão. Mais ou menos isso! Não era preocupante. Se as vendas forem muitas, há sempre a possibilidade de se desconfiar que foi o próprio autor a comprá-los. Faz sempre jeito, para os presentes de aniversários e de outras festividades.

Os outros, os de ler, nunca estão a concurso, continuava o pensamento. Sim, os livros de merecimento, pensava Toninho.

Ler, concluía como se o seu pensamento fosse audível, não é só saber identificar, decifrar e interpretar um palavreado escrito.

Ler não é apenas a aquisição de material informativo.

Ler é injectar sentimentos na informação decifrada.

Ler é crescer.

Ler também é interpretar-se, porque se interpretou. Interpretar e em gáudio.

Ler é sentir e sentir-se.

Ler encaminha o indivíduo a si próprio. Torna-o gente. Confronta-o e prepara-o para receber o outro.

Ler é altruísmo porque é pensar o outro.

Ler serve para despertar sentimentos e mover actualizações de pensamentos.

Ler serve para tornar infinitas as sensações.

Ler desmonta preconceitos e formas rígidas e passivas de sentir.

Ler é trabalho, é produção de gente.

Ler é renovação e é mudança.

Ler é um anti-estagnante e um desenferrujador na sua mais potente forma.

Ler é contrário à paralisante ordem social das coisas.

Ler move percepções.

Ler é lutar contra à mansidão e o conformismo, onde livro é a arma de guerra.

Ler, se para aí se está, ou se pode estar, virado, não é ler o manual de instruções da televisão nova.

Contudo, ninguém lê! Pensava franzindo a testa como que resignado! Como mudar? Questionava! Generalizando, ler os TOP(s) e os semelhantes familiares, não é ler! Só se fossem os TOP(s) de outro povo, rematava com uma ligeira ruborização. Ajustou-se, alastrando o mal para muito além dos TOP(s) e, esforçou-se, tirando um ou outro desse ranking livresco!

Quando não se lê, obviamente, só se pode gostar de televisão. Prioritariamente, mas não em exclusivo, dos apresentadores e apresentadoras dos programas de entretenimento (assim designados), em feroz competição para verem quem grita mais, quem gargalha mais desbocadamente, quem mais alto fala e quem mais e melhor cacareja e papagueia.

Isto, numa versão, sendo a outra, igualmente calibrada pela mesma qualificação, a que usa a alternância, traduzida por um ar piedoso da criatura que apresenta, alternado por uma satisfação sorridente e corpo saltitante, induzida por um jogo a dinheiro, que tanto pode ser ganho no estúdio como em casa assistindo sentado no sofá, com o telefone ao lado.

Em todo este povo há o hábito de não perderem uma oportunidade para falarem de si ou dos seus convincentes e experientes pontos de vista, transformados em contributos para a certeza (pela via de o “…eu por exemplo…”! Transformam-se, imediatamente, em modelos exemplares!).

Há também os programas, em que os prémios vão para quem mais sofre e tem a vida mais escavacada, desde que a exponha em público.

A desgraçada da mulher, que ainda agradece por estar na televisão a debitar todas as desvalias da sua vida, em escala pormenorizada, lavada em lágrimas (que também aconchega a cena), cheia de dívidas; os filhos humilhados na escola; o marido desempregado; o frigorífico vazio; o sogro cego a seu cuidado; as moléstias sem darem tréguas; os dentes todos cariados; água e electricidade cortadas; o senhorio diariamente à porta; ter que aturar as meninas da assistência social a vomitarem ameaças e moralismos (tão fácil de fazer com as mazelas dos outros!), fingindo que estão em franca protecção para com os menores,…, não é suficiente para fazer calar quem está a entrevistar! Decididamente que não! Além de ainda ter que ouvir um sábio conselho (invariavelmente na forma de “…mas é uma mulher forte e de coragem, que eu sei…aplausos aqui para a nossa Maria, por favor…”), ainda tem que participar na alusão à glorificação da miséria, do sofrimento, da sujeição e da pobreza, através das palmas.

Aplaudir a penúria dos outros.

Ganhar dinheiro à custa da miséria dos outros.

Os bons e aliviantes conselhos dados, acompanham-se de um fabricado ar de lamento, esgalhado pela moça ou moço do programa, mas logo esquecido pelo entusiasmo contrastante com que debitam, num sorriso patético, mais duas ou três vezes o número de telefone, já decorado pela plateia que também repete em coro e aplaude. Lasca Toninho!

Maldita fraqueza que impele o povo a tanto exercitar o terrífico, pobre, primário e egocêntrico narcisismo! Acrescentava, pedindo, um pouco que fosse, de bom senso! Desiludia-se sabendo que estava a pedir muito!

Lembrou-se que o rol não termina no pessoal do entretenimento. Há muito mais!

Aliviou-se, rindo-se da coincidência, quando pensava no povo que, na televisão, revistas e afins, comenta a vida dos outros, esmiuçadamente em todos os pormenores, à excepção da inteligência altruísta e da humildade que não têm, apesar de lhes serem feitas alusões.

A gravidade assume caracterizações dantescas quando se atrevem a publicar (o que chamam livro) os próprios mundos narcísicos, adornados com um parecer altruísta.

O problema também passa por existirem editoriais comparsas com a industrialização e comercialização do mau. Desde que dê lucro!

Isto é a quantificação do nada. Em valor real é a ode ao vazio. Continuava Toninho!

Um empate a esta gente toda, na maioria das vezes é o justo, arbitrava ele. 

Será que está justificada a imagem recorrente que tem, quando pensa nestas coisas? Lá lhe apareceu novamente a imagem de alguns hominídeos de gravata e de saltos altos! Apetrechados, agora, de um livro, nunca aberto, debaixo do braço.

Tinha sido uma construção de pensamento!

 

Na rua, a história era outra. Fora de casa, Olívia queria e gostava de ser casada.

A sua vida profissional dava-lhe liberdades de tempo para as futilidades de que gostava.

Sabia bem como tirar proveito disso.

Não perdia tempo, como o marido, preocupando-se. A vida dela era para ser vivida e por ela, dizia cantarolando.

Enquanto Toninho se embrenhava nas suas questões de cidadania, Olívia entretinha-se com as dela.

Andava ocupada com a escolha de roupa para o aniversário de uma conhecida, que ela designava por amiga.

Toninho raramente acompanhava a mulher nos programas dela.

Ela, em abono da verdade, apenas gostava de confirmar que era sabido que ela era casada com ele. Não fazia guerra por não aparecerem juntos. Até preferia assim.

Gostava de ser fotografada juntamente com o mulherio que funcionava como sua referência, para se ver e admirar numa revista qualquer especializada nos assuntos da sua valorização ou nos assuntos da nulidade, no dizer de Toninho.

Fazia sempre questão de dizer que era casada.

Olívia gostava, particularmente, dessas fotografias onde estão as moças todas de três quartos, mais ou menos encaixadas umas nas outras, com o habitual jeitinho de pé para o charme, desalinhadas por cima porque umas são mais compridas e outras mais rasteiras.

Sem ser através dos comprimentos e dos volumes, é difícil fazer-se a identificação, ria-se Toninho, quando Olívia chegava a casa já com a página da revista aberta, onde estava a fotografia com ela e as conhecidas.

Ela gostava de ler o seu nome na legenda da fotografia, junto com alguns nomes com que ela lambuzava o seu ego.

Riam-se, sem que ele desviasse os olhos do que estava a ler, quando ela lhe contava, sentada no braço do sofá onde ele estava, que fulana ou sicrana já há meia dúzia de anos que não passava dos 29 anos.

Para esse povo, o problema da idade era tão grande quanto o da solteirice, finalizava Toninho, dando o indicativo que já não queria ouvir mais.

 

Com o nascimento de Maria Teresa, Olívia ficou grata a tudo o que fosse santa e santo.

Toda a gravidez foi vivida, contrariamente ao que temia Toninho, com toda a normalidade.

Ele chegou a ouvir Olívia dizer, ao telefone, que gravidez não era doença.

Devia estar a conversar com outra mulher, daquelas que ela gostava de estar horas ao telefone para dizerem coisa nenhuma.

Só podia ser!

As outras, não querem ter registos destas existirem!